Meu pai
Meu pai esteve aqui esta noite.
Eu posso sentir o cheiro. Tive medo. Quando ele vai embora O mundo fica desamparado por uns dias. Meu pai é um estrangeiro, Um estrangulador, Um ET. Vive num mundo que não podemos tocar. E nos visita freqüentemente, Quando estamos prestes a nos acostumar com a sua ausência. Meu pai pára tudo. Rouba a cena, Mas não tira proveito da atenção que lhe damos. Despreza-nos. Mesmo quando me abraça e beija, Não me está percebendo, Não me toca. Na verdade está pensando em outra coisa. Meu pai vive em dois mundos. E, mesmo quando nos visita, Não abandona por completo o mundo dele. Então eu falo com ele, Pergunto coisas que ele responde, Mas sinto que ele nunca está aqui por completo. Meu pai nunca abandona o mundo dele E nós nunca poderemos visitá-lo lá, Onde, por certo, ele se faz inteiro. Meu pai nos reprova. Ele passa para fora e fecha a porta. Quando a abrimos, ele não está mais ali. Foi para o mundo invisível. Deixa uns dias de perda no ar. No mundo do meu pai, ninguém atende telefone. Então ficamos esperando que ele ligue Todas as manhãs de Sábado. À tarde saímos e voltamos a esperá-lo Novamente aos Domingos. Quando ele vem não nos trás nada. Nada. E quando ele sai, deixa o vazio. A impotência, a reprovação. Meu pai não sente nada por mim. Ele faz tudo que precisa fazer: Vem todas as semanas, Saímos, almoçamos, beija na despedida. Mas, na verdade, não quis estar aqui E por isso não sentiu nada. Às vezes me leva ao outro mundo E percebo como é diferente. Fico observando o semblante. A transformação é indescritível. Ele não me percebe E, quando eu falo com ele, Tudo volta a ser como na minha casa. Ele só fala comigo numa linguagem seca, Árida. Ele não se alegra comigo. Aprendi a aquietar-me, quando vai embora. Fico no sofá, vendo televisão E me limito a retribuir o beijo. Sei da porta invisível que ele vai atravessar, Que já procurei desesperado. Não é que eu tenha desistido de meu pai, Mas não sei como impedi-lo Nem onde fica a porta de seu mundo. No mundo de meu pai Tudo tem uma dimensão que não existe no meu. Então, ao nos visitar, Meu pai perde uma dimensão. Mas o meu mundo também tem uma dimensão Ausente no de meu pai. Quando nos visita, ele foge dela. Meu pai não me quer encontrar por inteiro. Algum medo terrível o impede de enxergar. E, assim, nossa relação é mutilada De uma dimensão E deixa essa ansiedade Essa expectativa sempre frustrada do encontro. Meu pai vive um exílio E só me visita clandestinamente. Por isso, não está inteiro. Uma parte sua fica permanentemente no exílio Para assegurar seu regresso. Assim, fica meu pai mutilado E sem me enxergar por inteiro. Meu pai não sabe que posso entender A outra dimensão de seu mundo. Também lá não me enxerga inteiro, Porque pensa que não tenho nada Além do que sempre viu aqui. Por inércia ótica. Meu pai não sabe que posso abandonar o meu mundo Para estar com ele. Sei que nunca nos encontramos. E quando ele sai Fico absoluto, no sofá Até passar a ausência (do livro: Fadas Guerreiras, à venda em www.caca.art.br)
Carlos Augusto Cacá
Enviado por Carlos Augusto Cacá em 04/02/2007
Alterado em 19/02/2007 |